segunda-feira, 22 de agosto de 2011

A Longa Jornada pela Via do Budo

Encontrei-me neste instante a refletir sobre as Artes Marciais. Como que praxe esse tipo de reflexão se tornou íntegra desde a juventude quando comecei a andar pela Via Marcial. Tempo qual praticando os primeiros golpes, achava que o artista marcial era aquele personagem dos filmes de ação, destemido e bom de briga. Que sabia chutar e socar de forma perfeita, e nenhum homem ou arma seria capaz de freia-lo. Eram apenas os primeiros passos na via marcial, muito longe para ao menos enxergar a Montanha.

As Artes Marciais surgiram por uma necessidade, pela sobrevivência, como forma de defender a vida. Numa época onde as armas de fogo não existiam, surgiram da necessidade de transformar o corpo em arma.
Ao mesmo tempo em que as armas de longo alcance foram evoluindo, a luta corpo a corpo nas guerras foi desaparecendo. Há pensadores que digam que as guerras do passado eram mais humanas, pois havia um contato maior entre as partes envolvidas no campo de batalha. O espírito de bravura dos antigos guerreiros foi substituído por guerras tecnológicas.
       
Tomaremos como base nessa reflexão as Artes Marciais Japonesas. Com a unificação do Japão no século XVI, as guerras no país se tornaram menos frequentes. O Samurai que antes tinha como ofício à guerra, passou a desenvolver funções burocráticas aos feudos. A partir de então, as Artes Marciais tomaram um rumo mais espiritualizado, buscando o polimento do caráter dos praticantes. O Arco e a Espada passaram de instrumento de combate a veículos para a Iluminação.

Assim, Bugei (Arte da Guerra), se transforma em Budô (Caminho da Guerra) um Caminho Espiritual que visa polir o guerreiro em sua conduta. O Bushidô (Caminho do Guerreiro), o código de ética e moral dos Samurais se torna o Norte no auto-aprimoramento do caráter pessoal. O estilo de vida da classe guerreira segue então o rumo da espiritualidade.

O Bushidô: Justiça; Coragem; Compaixão; Cortesia; Honestidade; Honra; Lealdade.

No presente momento, em que vivenciamos os efeitos da globalização na sociedade, notamos que as Artes Marciais não ficaram fora do processo. Diversos estilos de luta orientais se espalharam por diferentes partes do mundo. Os Dojo se espalharam, e através da internet tornou-se fácil o acesso a qualquer estilo que se deseje aprender os princípios básicos.

Muitos estilos tradicionais passaram por um processo de “ocidentalização”. O estilo de vida oriental era complexo demais para que os ocidentais pudessem compreender. Eis que o desejo da criação de um mercado de consumo no mundo marcial fez com que raízes fossem perdidas. Consequente a esta transformação, técnicas e princípios foram esquecidos, ou meramente adequados ao perfil ocidental. Houve também a simbiose entre estilos, que deram origem a novas artes voltadas à competição.

Com o passar do tempo, a “arte marcial” de forma mais difusa entrou nas modernas arenas de gladiadores que divertem o público num espetáculo de selvageria regado a sangue. Nasce então, uma indústria que abanca eventos milionários, que recruta atletas marciais ambiciosos pelo brilho dos cinturões, de diversas partes do mundo.
         
A difusão das “artes marciais” tomou um novo rumo. Muitas portas se abriram na última década com a oferta de ensinar a lutar e a promessa de um brilho pouco duradouro diante da mídia que alavanca os grandes eventos de artes marciais. Tornou-se comum o ingresso nas academias, que têm grande rotatividade de pessoas atrás da proposta de se tornarem atletas competidores dos eventos de luta.

A imagem serena e espiritualizada do antigo guerreiro japonês foi colocada no esquecimento e a imagem do lutador marcial foi associada a músculos e um aspecto feroz. Se assemelha a um troglodita, lutando dentro em uma jaula. Alimentando o próprio ego com aplausos e brilhos de flash.

Dourados anos das Artes Marciais, até meados da década de noventa. Felizes daqueles que tiveram seus primeiros contatos com o que foram as Artes Marciais até esse período em que a tradição era vista com seriedade e respeito. Tempos em que o Reigi To Saho era um aspecto fundamental do aprendizado e uma exigência.

Nesse mercado das artes marciais, não existe filosofia, tampouco princípios. Não existe responsabilidade sobre as técnicas ensinadas. Pessoas sem o mínimo de preparo aplicam técnicas avançadas, sem ter noção do nível de contundência que ela proporciona. Técnicas de estrangulamento e luxação são ensinadas sem decência, e quem as aprende exibe sem temer as consequências da aplicação. Pois algumas se aplicadas com um mínimo de força podem causar grandes lesões e até a morte.

Contudo, nem tudo está perdido. Ainda existem Dojo Tradicionais, e estes funcionam no anonimato conservando e repassando o que os antepassados construíram durante os séculos. Longe de tablóides, longe da mídia, não prometem nada além de apontar para um Caminho de lapidação e crescimento do espírito.

Mostram o Caminho, e o praticante que se diz disposto a segui-lo irá transitar pela Senda. Este cairá diversas vezes, e aprenderá levantar-se mais forte. Como o Kataná que enfrenta a água, o fogo e o malho até se tornar uma lâmina de perfeito corte. Esse Caminho não oferece troféus nem títulos, senão o mérito de vencer a si mesmo.

Trilhar o Caminho da Espada. Não haveria definição melhor para quem transita pela via do Budô. Seguir O Caminho Marcial é andar sobre a afiada e mortal lâmina da espada. Manter o equilíbrio em todos os aspectos humanos. Se formos intransigentes e demasiadamente firmes, a lâmina nos cortará. Se andarmos rápido demais, a lâmina nos cortará. Se nos tornarmos pessoas impulsivas e desequilibradas, iremos desviar e a lâmina nos cortará.

Seguir o Caminho da Espada significa se policiar nos aspectos humanos constantemente. Manter a mente em alerta. Ter ciência da reação que cada um dos seus atos pode ocasionar, e pautar sua conduta de acordo com isso. Aprender com os erros, tirar a lição de cada derrota. Compreender que:

O verdadeiro sentido das artes marciais não está em “vencer o próximo” mas sim encontrar um meio de vencer a si próprio e alcançar a vitória na vida. – MUSASHI, Miyamoto.

Aprender a não se vangloriar sobre os feitos, mas deixar que as ações mostrem por si o que os princípios tem feito para si. Dificilmente vamos visualizar as mudanças. Se virmos em si mesmos às mudanças é sinal de que não estamos praticando o Caminho. Os benefícios da prática são como as marcas da idade, olhamos ao espelho todos os dias e não as notamos que elas estão chegando. Porém, alguém que não vemos há muito tempo as aponta num reencontro.

Esse é o motivo porquê muitos começam a caminhada, mas poucos permanecem no Caminho. O Budô é um Caminho vitalício, no qual poderemos passar a vida buscando entender. Contudo, podemos chegar ao final dessa existência sem compreende-lo. Resultados vivenciados em longo prazo. Méritos internos que não ficam expostos em prateleiras empoeiradas. Mas devido significado do valor a vida, cortesia e respeito à dignidade de outrem.

Se chegarmos ao último suspiro dessa vida tendo mantido firmes passos pela Via, poderemos sorrir no instante quando a vida passar diante dos olhos. E fecharemos os olhos felizes, convictos de que tudo valeu a pena. Como a flor de cerejeira que no ápice de seu deslumbre se solta pelo ar. Assim nosso espírito se soltará deste corpo rumo ao outro ciclo da existência.

A LONGA JORNADA PELO BUDÔ.


REFERÊNCIAS:
Kuden – Hombu Dojo, transmitido em 05/08/2011
YOSHIKAWA, Eiji. Musashi, Vol. 1. Estação Liberdade, 1999

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